O poder (e o privilégio) do contato físico na sociedade pós-digital

Empresas investem em eventos e experiências presenciais, a fim de aprofundar e solidificar o relacionamento com os clientes

POR CAMILA HESSEL

Em um momento guiado por tantas vivências digitais, cresce a importância de reforçar também as conexões físicas. Atentas ao potencial das experiências vividas pelos clientes em lojas, eventos e encontros físicos, e não apenas virtuais, anunciantes e empresas de comunicação vêm diversificando as formas de interagir com o público e investindo em experiências offline.

O que move essas empresas é o fato de que, com praticamente todos os setores e empresas investindo pesadamente em novas tecnologias, ser digital já não é um diferencial competitivo – como destaca estudo da Accenture sobre as relações entre marcas e consumidores na medida em que se avança coletivamente para a sociedade pós-digital.

Nesse cenário, é preciso encontrar novas formas de se conectar de forma relevante às pessoas. E, em alguns casos, isso passa por uma ressignificação das interações offline. Embora recorram cada vez mais à tecnologia para facilitar seu dia a dia, os consumidores também vêm expressando a necessidade de estabelecer relações mais humanizadas e significativas para o seu cotidiano. São buscas que vão além de produtos e serviços. As marcas que compreendem e respondem a esse desejo de forma eficiente têm mais chances de acessar e engajar as pessoas.

No varejo, esse entendimento impulsiona ações omnichannel, com a valorização das interações nas lojas físicas. “Diversos varejistas estão mostrando que o offline está longe de desaparecer. Muitas empresas vêm trabalhando para que as pessoas deixem suas lojas não apenas com produtos, mas com experiências”, destaca estudo da KPMG sobre experiência do consumidor.

Um inspirador exemplo dessa tendência é a House of Vans, em Chicago (EUA), que vai muito além do conceito tradicional de loja e conta com parque de skate e palco para shows, debates, exibição de filmes e outros eventos. O espaço se propõe a ser um lugar para as pessoas expressarem sua criatividade e explora fortememente o sentimento de comunidade.

Outra marca que tem em sua essência o convívio direto e regular com os consumidores é a Rapha, da Inglaterra, que produz artigos de luxo para ciclistas. A empresa trabalha o conceito de clube e reúne seus clientes em torno de vários encontros e aventuras presenciais ligadas ao ciclismo, paixão que une os fãs da marca (vídeo a seguir).

Mais um estudo, realizado pela Sembra Media, ressalta como os contatos diretos com o público ajudam organizações midiáticas digitais a construir relações de longo prazo e incrementar o faturamento. Embora os eventos não estejam entre as principais fontes de receita desse tipo de empreendimento, são extremamente importantes para aprofundar o relacionamento com a audiência e impulsionar assinaturas e doações.

Uma das organizações que seguem essa filosofia é a Radio Ambulante, que produz um podcast de não-ficção em idioma espanhol, distribuído pela NPR.  Por meio do projeto Clubes de Escucha, a empresa promove encontros e discussões presenciais em torno de episódios de podcast (vídeo a seguir). É como se fosse um clube do livro, sendo que as pessoas se reúnem para ouvir e conversar sobre podcasts. A organização também criou um manual para orientar outras pessoas a organizar seus próprios clubes de escuta, seguindo o modelo da Radio Ambulante.

Uma das motivações é conectar as pessoas sem passar pela mediação dos algoritmos que filtram as relações digitais. Entre os participantes do programa-piloto, 84% afirmaram que os clubes de escuta proporcionam conversas que eles não teriam em outros espaços, 91% disseram que a qualidade da comunicação nesses eventos é maior do que nas redes sociais e 99% expressaram desejo de participar novamente desses encontros.

Outra iniciativa na área é o programa Community Conversations, criado por The Texas Tribune, organização jornalística digital sem fins lucrativos, com foco no Texas (EUA). Por meio do projeto, o jornal realiza uma série de encontros com a comunidade local em torno de questões relevantes para a população texana.

São cerca de 60 eventos por ano, reunindo políticos, empresários, líderes comunitários, estudiosos e membros do público em geral. O jornal também criou uma série de guias temáticos para ajudar seus leitores a organizarem encontros semelhantes em suas comunidades. Além disso, The Texas Tribune passou a promover eventos exclusivos para as pessoas que participam do seu programa de assinaturas e doações, proporcionando momentos para as pessoas relaxarem, trocarem ideias e fortalecerem suas conexões com a comunidade local.

Com esse tipo de iniciativa, as marcas de alguma forma podem contribuir para democratizar algo que, paradoxalmente, vem se tornando um privilégio: a vida para além das telas. Ao contrário do que se verificava no início da expansão tecnológica, quando poucos tinham acesso a determinadas ferramentas e serviços, se desconectar foi virando uma regalia para pessoas de maior poder aquisitivo. “O contato humano está se tornando mercadoria de luxo. Quanto mais rico você é, mais você gasta para ficar offscreen“, crava recente artigo do jornal The New York Times sobre o tema.