SXSW Insights: convergência tecnológica e humana

Danos e ganhos da hiperconectividade deram o tom às principais discussões no festival

A agenda temática do SXSW 2024 foi transversalmente marcada por dois fios condutores: convergência de tecnologias e conexões humanas. Os dois se entrelaçam e se retroalimentam nas similaridades e nos paradoxos. No momento em que vivemos sob os ganhos e danos da hiperconectividade, o festival sublinhou a urgência de se resgatar a intimidade e a empatia; preservar e aprimorar a consciência; valorizar o afeto e o amor. São essas as características capazes de nos diferenciar das máquinas e nos levar a um futuro sustentável.

O fluxo da convergência tecnológica se materializou, principalmente, na aguardada sessão de Amy Webb, fundadora e CEO do Future Today Institute. No seu Tech Trend Report 2024, a futurista mostra que a Inteligência Artificial já é tão onipresente nos negócios e na vida das pessoas que se integra a interfaces e dispositivos, consolidando a era dos ecossistemas conectados. Wearables, óculos de realidades estendidas, chips e outros gadgets se apresentam como extensões do corpo e das nossas casas, coletando dados capazes de transformar a medicina e a agricultura e dando nova perspectiva à dimensão humana por meio da biotecnologia. 

Amy Webb, fundadora do Future Today Institute: superciclo tecnológico

Essa convergência foi definida por Amy Webb como technology supercicle. Sob a ótica econômica, trata-se de um momento de expansão que impõe oportunidades e desafios enormes às atuais gerações, agrupadas pela pesquisadora sob a sigla GenT, ou Geração de Transição. “Coletivamente, estamos passando por uma coisa importante agora. Todas as pessoas que estão vivas hoje, cada um de vocês, faz parte de uma grande transição, o que significa que a nossa sociedade estará muito diferente quando essa transição acabar”, analisou.

No entanto, se vivemos em um contexto de exponencialidade em que a mudança é uma constante, não seria a transição uma característica permanente e contínua dos nossos tempos?

Essa reflexão coloca sob os holofotes o outro fio condutor deste SXSW: as conexões humanas. Em um contexto de evolução tecnológica que transforma a economia e a sociedade, o festival destacou a urgência de valorizar e nutrir as relações entre pessoas. “Acreditamos que, nesta era crescente de automação, a conexão olho no olho entre as pessoas ainda é a tecnologia mais poderosa”, pontuou Hugh Forrest, chefe de programação do South by, na sessão magna de abertura do festival. 

Esse fio temático encontrou eco em diversas vozes ao longo da conferência. A psicoterapeuta Esther Perel e a pesquisadora Brené Brown, por exemplo, discorreram sobre o risco de estarmos alimentando uma intimidade artificial pelo excesso de tempo na frente das telas. A poetisa Ada Limón, por sua vez, exaltou o senso de pertencimento humano, mostrando que somos todos parte de um único ecossistema. Já o escritor Jay Shetty chamou a atenção para os riscos da desconexão afetiva: isolamento, distanciamento, solidão, separações.

EPIDEMIA DA SOLIDÃO: 
A URGÊNCIA DA RECONEXÃO HUMANA

O aumento do consumo de telas, o aspecto viciante dos formatos, o acesso mais fácil para mais gente, cada vez mais cedo: esses são apenas alguns dos motivadores da crise global de saúde mental que vivemos, tema amplamente abordado no SXSW 2024. Em maio de 2023, o principal conselheiro do governo norte-americano para saúde pública, Dr. Vivek Murthy, divulgou um documento oficial estabelecendo a solidão como uma epidemia com efeitos tão nocivos à saúde quanto fumar 15 cigarros por dia. Para Murthy, a saída disso é a conexão humana. 

De acordo com dados desse documento, os norte-americanos estão gastando menos tempo juntos presencialmente que há 20 anos – algo mais crítico entre jovens de 15 e 24 anos, que tiveram 70% menos interações sociais com seus amigos. A motivação para isso é o uso de redes sociais como substitut do encontro presencial. E aí mora o perigo: de acordo com a especialista em comunidades Carrie Melissa Jones, que apresentou um painel profundo sobre criação de comunidades de interesse, levamos até seis vezes mais tempo para construir confiança numa relação online do que ao vivo. 

A epidemia de doenças mentais e a saída pela cura coletiva da reconexão humana ecoou em diversos momentos do festival, em salas de maior e menor tamanho. Esteve presente tanto em painéis disputados pelos Ballrooms do Austin Convention Center até em saletas de discussões com narrativas emergentes. Veio de uma destas, inclusive, uma fala poderosa para combater o surto de solidão e de adoecimento mental. 

“Não estaremos bem enquanto todos não tiverem acesso justo a uma vida com bem-estar. Temos que nomear o que está acontecendo no mundo, porque nomear o problema é o primeiro passo para adotar uma mentalidade decolonial. O que está acontecendo é que estamos derramando nossos traumas individuais no coletivo, o tempo todo”, criticou a professora e especialista em medicina integrativa Anusha Wijeyakumar, da Universidade Estadual de San Diego, na Califórnia. 

ACCOUNTABILITY:
ESTAMOS AO MENOS FAZENDO O BÁSICO?

Inteligência Artificial, privacidade, vieses, emergência climática, saúde mental: algumas das temáticas protagonistas no SXSW 2024 envolvem camadas genuínas e necessárias de cobranças por mais responsabilidade nas rotas traçadas daqui em diante. 

As discussões sobre Inteligência Artificial tiveram um tom mais pragmático na edição deste ano do festival. Passado o hype em torno da IA generativa e do ChatGPT, o tema ganhou contornos práticos com aplicações em todas as indústrias, impactos positivos e negativos e uma série de debates sobre o futuro da humanidade na esteira da exponencialidade. Nesse cenário, a convocatória por responsabilidade em torno do uso da tecnologia foi uma tônica comum nos painéis e nas conversas pelas ruas de Austin. 

Dos questionamentos sobre os hiperpoderes nas mãos de poucas big techs, que detêm hoje a maior parte dos dados do mundo, às pressões nos governos pela regulamentação da IA, o tema accountability se transformou em elemento central na discussão de futuros possíveis. “Não podemos cometer com a Inteligência Artificial o mesmo erro que cometemos com as redes sociais”, conclamou Hugh Forrest, no encerramento do SXSW.

Figura frequente no evento, o pesquisador e apresentador Scott Galloway criticou a falta de responsabilização sobre as plataformas algorítmicas e pediu associação direta e penas mais severas para big techs no que se refere às crises de privacidade de dados e disseminação de fake news. Já a Fundadora da Liga da Justiça Algorítmica, a cientista da computação e ativista digital Joy Buolamwini, se posicionou de forma muito clara contra a ideia de ambivalência da tecnologia. 

Ecoando pensadores como o sociólogo espanhol Manuel Castells e o brasileiro Sérgio Amadeu da Silveira, Buolamwini acredita que “as máquinas não são tão neutras”, e que os códigos refletem “quem tem o poder de modelar a tecnologia tanto com suas preferências quanto com suas prioridades e, às vezes, com seus próprios preconceitos”. Com isso, ela reforça o entendimento de que, se os avanços tecnológicos não forem bem regulados e responsabilizados, podem vir a causar danos muitas vezes irreversíveis para aqueles que forem “excluídos pelos códigos” (excodeds).

Joy Buolamwini, fundadora da Liga da Justiça Algorítmica: excluídos pelos códigos (excodes)

As provocações se desdobram também para outros campos não menos conectados à pauta tecnológica. Em uma das sessões mais potentes do ano, a atriz e ativista Jane Fonda resgatou o espírito do festival ao não poupar críticas às indústrias e aos políticos que, segundo ela, destroem deliberadamente os mais vulneráveis e o planeta. “Exxon-Mobil, Chevron, Shell… Eles sabiam desde os anos 1970 que os produtos que colocavam no mundo iam causar o aquecimento global. E não fizeram nada para impedir”, disse.

Nessa avalanche de transformações, cuidar do planeta e das pessoas é um imperativo. Entre as celebridades que subiram ao palco, Meghan Markle, duquesa de Sussex, foi dura ao analisar as consequências do bullying presente nas redes sociais na saúde mental. Outros palestrantes lançaram luz sobre o que chamaram de “epidemia da solidão”, uma consequência das instituições contemporâneas que fomentam a competitividade, o individualismo e o extremismo, como defendeu Radha Agrawal, CEO do movimento pelo bem-estar Daybreaker.

Diante de tantas camadas e rotas a serem corrigidas, muitas perguntas ecoam após o SXSW: estamos ao menos fazendo o mínimo nas nossas comunidades, no trabalho, com as pessoas ao nosso redor? Estamos valorizando o nosso voto e fiscalizando os representantes políticos? Estamos atuando para preservar as democracias? 

Como profissionais da indústria da comunicação e do marketing, estamos conscientes do poder das nossas conexões e decisões, considerando a construção de futuros inclusivos e sustentáveis?