Reset organizacional: não dá mais para dissociar lucro de responsabilidade social

Estudo da Accenture Interactive provoca empresas a repensar a inovação em meio a tantas e tão expressivas mudanças de valores

Reflexões sobre a forma como nos relacionamos com o meio ambiente, uns com os outros, com o dinheiro e com a tecnologia vêm se intensificando nos últimos anos. Nesse contexto, as empresas são cobradas a assumir uma maior responsabilidade sobre a construção coletiva e sustentável do futuro. Com a pandemia do novo coronavírus, fica ainda mais evidente a necessidade de realinhar valores e estratégias organizacionais.

Construído com o apoio de 33 escritórios da Accenture Interactive, o relatório Fjord Trends 2020 destaca essas e outras tendências que devem guiar os negócios neste ano. O relatório seria apresentado no SXSW 2020, que foi cancelado devido à Covid-19. Confira os principais insights do estudo.

1. Novas métricas de crescimento

O sucesso das empresas costuma ser medido pelos ganhos financeiros. Mas é crescente a pressão de investidores e consumidores para que sejam consideradas, também, outras métricas de crescimento – como impactos ambientais, boa governança, felicidade dos funcionários etc. A responsabilidade social e ambiental já era uma pauta das corporações, mas esperam-se posturas e ações mais significativas e efetivamente transformadoras.

“Lucro é importante, mas também é a sociedade. É tempo para um novo capitalismo, mais justo, de igualdade e sustentável”, pregou o CEO e chairman da Salesforce, Marc Benioff, no World Economic Forum, em janeiro de 2020. No ano passado, o Financial Times lançou The New Agenda, para ajudar corporações a dar foco ao propósito. A mensagem do site é clara: “Capitalismo, hora de fazer um reset”.

2. Design centrado na vida

A sociedade tem demonstrado um cuidado maior não apenas com a vida humana, mas com todas as vidas. Ao considerar o indivíduo como integrante de um ecossistema, o design trabalha com dois valores: o pessoal e o coletivo. O design que direciona alguém a uma causa coletiva é exemplo de design centrado na vida.

É o caso da startup Stuffstr, plataforma que dá novo destino a roupas e acessórios usados, unindo o conceito de economia circular à tecnologia. A empresa trabalha em parceria com varejistas como John Lewis.

A Sturffstr acompanha as compras feitas pelos clientes cadastrados nos sites dos varejistas ou em seu próprio app, e recompra os itens que os consumidores não querem mais usar. A coleta é feita em domicílio, e as pessoas recebem vouchers para gastar nas lojas dos varejistas parceiros. As peças são revendidas ou recicladas.

Com a Adidas, a startup se tornou parceira do programa Infinite Play: consumidores oferecem seus produtos da marca para vender, e a Stuffstr recolhe as roupas, entregando em troca um e-gift card no valor da revenda.

3. A transformação do dinheiro

O dinheiro está mudando, da forma à experiência. No passado, era moeda nacional. Hoje, transita em ecossistemas digitais, levando junto uma ampla gama de informações do usuário. As variedades de serviços e produtos nessa área devem estar no radar das marcas, já que a transformação do dinheiro envolve players fora do setor bancário.

No mercado de pagamentos, crescem soluções como Google Pay ou TransferWise. Há aplicações mobile com mais funções, como o AppleCard, cartão de crédito com software, que se conecta ao Apple Pay e gerencia gastos. E há produtos populares, como o M-Pesa, do Quênia, que faz transferência de dinheiro via celular. Ele nasceu para microempreendedores que não tinham conta em banco, mas tinham smartphones. Agora, está em sete países africanos.

Das tecnologias emergentes, destaca-se a biometria, com pagamentos por impressões digitais ou por reconhecimento facial e de retina. Calcula-se que a biometria deverá autenticar, em transações, US$ 2 trilhões em 2023 (17 vezes mais do que em 2018).

4. Projetando a inteligência

O próximo passo da Inteligência Artificial será projetar a engenhosidade humana. Ela pode gerar valor em três áreas: o aprimoramento da experiência humana, a capacitação de profissionais e a inovação.

. Na primeira, a AI amplia capacidades perceptivas. Pode melhorar o aprendizado, por exemplo, recomendando conteúdo, conforme as habilidades do aluno.

. A segunda envolve a transformação digital. Grandes companhias montaram equipes de ciência de dados para ajudá-las nesse processo. Mas, para que ideias virem ações replicáveis, deve-se capacitar funcionários para lidar com operações complexas.

. Na terceira área, a AI ​faz simulações e acelera a criação de produtos, serviços e modelos inteiros de negócios.

Uma mostra de como a tecnologia potencializa a capacidade humana é o projeto do designer Philippe Starck com a Kartell, empresa italiana de móveis, e a Autodesk, marca de softwares. Eles criaram a primeira cadeira desenvolvida por colaboração entre um humano e uma inteligência artificial.


5. Código de barras humano

Novas tecnologias estão nos identificando por características físicas e traços de comportamento. Entre elas, equipamentos de reconhecimento facial e corporal que conseguem nos ler como se fôssemos códigos de barras ambulantes.

Novas oportunidades surgem com o 5G, ao conectar pessoas, sensores e máquinas. A Internet dos Corpos será adicionada à Internet das Coisas, facilitando a criação de novos modelos de negócios.

Tais avanços suscitam preocupações sobre privacidade e consentimento, que devem ser tratadas com seriedade. Com dados biométricos, qualquer risco de invasão ou violação de segurança compromete permanentemente o indivíduo – pode-se alterar uma senha, mas não a impressão digital.

6. Pessoas líquidas

O capitalismo está em crise, em função da revisão de valores ambientais e sociais. O conceito de “pessoas líquidas” representa também uma revisão, mas no nível individual. Elas repensam a maneira como consomem, avaliando o uso de recursos do planeta e os modos de produção. Refletem, ainda, sobre temas como inclusão e gênero.

Marcas podem encontrar oportunidades se organizarem uma área de Insights Humanos, em vez de Consumer Insights. O foco não é contar indivíduos que adotam determinadas atitudes, e, sim, avaliar o contexto que cerca as decisões tomadas por essas pessoas. E ajustar as estratégias de acordo com esses comportamentos.

A brasileira Beleaf (ex-VeganJá) passou por rebranding para atender um público maior, ao notar que também vendia para pessoas fora do target inicial. Nos EUA, o Burger King e a Impossible Foods, de alimentos plant-based, se uniram para lançar o Impossible Whopper, feito com hambúrguer vegetal.

7. Duplo digital

Na indústria, o gêmeo digital é um modelo virtual de um processo físico, produto ou serviço. Emparelhar o real e sua “cópia” permite a análise de dados e o monitoramento de sistemas.

O conceito adentra o campo pessoal. O duplo digital é uma manifestação virtual de nós mesmos. Mais do que isso: pode ser o depositário de todos os dados sobre os quais temos controle. Ao gerenciá-los, são guardiões de nossas vidas digitais.

A nova etapa de nossas manifestações virtuais irá combinar dados pessoais, contextos e informações externas. No futuro, o duplo digital concentrará atividades como planejar a viagem de férias do humano. E as empresas terão de lidar com ele.