Os desafios do jornalismo diante da pandemia e da desinformação

Em sua primeira edição totalmente digital, ISOJ enfocou os esforços do setor para se adaptar ao isolamento social e combater a propagação de mentiras e os ataques a jornalistas

International Symposium on Online Journalism (ISOJ) ganhou sua primeira edição completamente digital na semana passada. Realizado anualmente desde 1999, o evento é um programa do Knight Center for Journalism in the Americas e aborda a evolução e a transformação do jornalismo online, a partir da interação entre a academia e a indústria. 

Entre os diversos workshops e painéis apresentados entre os dias 20 e 24 de julho, selecionamos três sessões que abordam grandes desafios enfrentados pelo setor no momento atual, diante da pandemia de Covid-19, da alarmante onda de desinformação e dos crescentes ataques à democracia e ao jornalismo, impulsionados pelas redes sociais.

O impacto da mídia social na democracia

O primeiro keynote do evento foi com a jornalista Maria Ressa, considerada uma das pessoas mais influentes do ano pela revista Time em 2018. Ressa é uma das fundadoras do veículo de comunicação Rappler, nas Filipinas, que faz uma crítica e contundente cobertura da gestão do presidente Rodrigo Duterte. A jornalista vem sofrendo uma contínua perseguição por parte do governo, e foi condenada por ciberdifamação no mês passado.

Em maio, o jornalismo enfrentou outro pesado ataque no país, quando a Comissão Nacional de Telecomunicações das Filipinas determinou o fim das operações da emissora de televisão ABS-CBN. No início de julho, Duterte promulgou uma lei anti-terrorismo apontada por organizações de direitos humanos como mais um golpe contra a democracia e a liberdade de expressão no país.

 “O presente distópico que vivemos hoje chegará em breve a uma democracia perto de você, se já não estiver lá”, alertou Ressa. No ISOJ, ela analisou como as mídias sociais são usadas para construir narrativas de silenciamento, culminando em processos judiciais como o que ela e outros colegas de profissão enfrentam agora.

Ressa contou que os ataques contra ela começaram em 2016, no Facebook, a partir de perfis pró-Duterte, que repetem insistentemente que os jornalistas são criminosos e avançam para um processo de desumanização dos seus alvos. Num segundo momento, em 2017, o discurso contra os jornalistas foi incorporado pelo presidente e outras autoridades públicas. Em 2018, Ressa e outros profissionais começaram a ser investigados e processados na justiça. Em 2019, oito mandados de prisão contra ela foram emitidos. Em 2020, a jornalista foi condenada por ciberdifamação. “É assim que se criam realidades alternativas. É assim que se disfarçam mentiras como fatos. É assim que se mata uma democracia”, afirmou Ressa.

Ela chamou atenção para a grande responsabilidade das redes sociais nesses processos: “No Facebook, não importa quão bom seja o jornalismo que produzimos, ele nunca vai ter o alcance das mentiras. Por isso, insisto que não se trata apenas de banir anúncios políticos. É o design da plataforma que precisa ser repensado”.

Ressa defende que as plataformas sejam responsabilizadas por esse tóxico sistema de informação. E que também haja mais incentivos para que essas empresas protejam seus usuários – um caminho, segundo ela, seria uma legislação que permitisse a portabilidade de dados.

Embora bastante consciente das ameaças que a democracia, o jornalismo e ela, em particular, enfrentam, Ressa se mantém firme na resistência: “Quando se trata de uma batalha pela verdade, os jornalistas são ativistas. Acho que estamos vivendo uma espécie de teste do que podemos fazer coletivamente e globalmente”.

Covid-19: reestruturando a redação 

De uma hora para outra redações de todo o mundo se viram forçadas a produzir e distribuir seu conteúdo a partir de home offices. Catherine Kim, Global Head of Digital News na NBC News & MSNBC, compartilhou como o grupo lidou com esse desafio e sinalizou as inovações que devem se manter pós-pandemia.

Kim apontou a agilidade como um dos ganhos desse período. Ela citou como exemplo a criação de ferramentas editoriais que antes levariam seis a oito semanas para serem desenvolvidas, e acabaram sendo lançadas em duas semanas, com foco no que realmente era indispensável.

A executiva também observou como os processos digitais promoveram mais transparência e conexão entre os times, tornando as relações ainda mais horizontais. “Nós já não tínhamos muita hierarquia, mas na pandemia passou a haver um maior compartilhamento de informações e responsabilidades. As pessoas se sentiram mais empoderadas e ganharam mais poder de decisão”, contou.

Os jornalistas também foram desafiados a inovar no storytelling, fazendo entrevistas e construindo narrativas a partir de ferramentas como o Zoom, além de explorar outras linguagens. Um case destacado por Kim foi a parceria com um estúdio de quadrinhos e animação para o desenvolvimento de uma série chamada Covid Chronicles.

Como potencializar o fact-checking

O desafio de tornar a checagem de fatos mais efetiva foi tema de um dos painéis do ISOJ. A sessão Desinformação e Misinformação: o que pode ser feito além do tradicional fact-checking? contou com a participação de Talia Stroud, diretora do Center for Media Engagement, da University of Texas at Austin; Don Heider, diretor executivo do Markkula Center for Applied Ethics; Cristina Tardáguila, diretora adjunta da Poynter’s International Fact-Checking Network; e Craig Silverman, editor de mídia no BuzzFeed.

Craig Silverman ressaltou a importância de não se concentrar apenas nas informações falsas, mas também nas redes por trás delas. “É preciso investigar as pessoas e interesses que criam e propagam essas mentiras, expor seus sistemas e táticas”, defendeu. Entre as reportagens do BuzzFeed nessa área estão matérias sobre as motivações financeiras de pessoas envolvidas nesses esquemas, incluindo o aluguel de perfis no Facebook, por meio dos quais se veiculam anúncios. “Muita gente não se importa com política. Está nisso por dinheiro”, afirmou.

Don Heider chamou a atenção para o risco de simplificar demais certas histórias e defendeu mais contexto para as checagens. Ele recomenda o que se chama de truth sandwich, que consiste em apresentar primeiro uma verdade, contextualizando o assunto. Depois, introduzir a declaração investigada. E terminar com mais uma verdade, oferecendo ainda mais contexto.

Cristina Tardáguila levantou a necessidade de investigar o impacto do trabalho dos checadores, a fim de torná-lo mais eficaz. Segundo ela, um fator essencial nos processos de fact-checking é a colaboração. Tardáguila coordena #The CoronaVirusFacts Alliance, criada em janeiro, que reúne organizações de checagem de 74 países, compartilhando conteúdo sobre a Covid-19 em mais de 40 idiomas. A parceria também se estende a pesquisadores, que desenvolvem análises mais profundas a partir das apurações e da base de dados construída pelos checadores.

Uma preocupação comum a todos os speakers é a checagem de mídias manipuladas e sintéticas. Algumas organizações de fact-checking já vêm usando ferramentas forenses, mas ainda se trata de um processo caro e trabalhoso. A necessidade de diversificar os formatos e as linguagens utilizadas para apresentar os resultados das checagens também foi apontada por vários dos palestrantes, principalmente quando se considera que vivemos na economia da atenção. “Pensar em formas criativas de compartilhar a informação é uma das estratégias para combater a propagação de mentiras”, pontuou Talia Stroud.

As palestras do ISOJ estão disponíveis no YouTube.