Governos e engajamento cívico: a fronteira entre o importante, o urgente e o inevitável

Tecnologias e soluções que reforçam a participação democrática de cidadãos em suas regiões foram destaques no SXSW

Quem percorreu os keynotes mais disputados do SXSW, realizado entre os dias 7 e 15 de março, em Austin (Texas, EUA) teve a sensação de ressaca generalizada. Se há algum tempo a tecnologia e as redes eram vistas como propulsoras de movimentos pela democracia, a sensação atual é de desalento diante da avalanche de desinformação e da guinada conservadora dos mandachuvas das big techs.

A trilha temática de Governo e Engajamento Cívico resistiu à tentação de abraçar extremos, ancorada em uma visão pragmática de quem acompanha de perto as relações entre empresas e governos, como ativistas da governança tecnológica e acadêmicos que estudam os rumos da democracia em tempos de hiperconexão.

Não faltaram críticas – mas uma leitura mais ampla deixa a sensação de que há luz para além do pessimismo apregoado nos palcos principais. “Boa parte das pessoas passou a enxergar a democracia como algo distante, que acontece nos gabinetes e só beneficia um pequeno grupo de privilegiados”, diz Kurt Gray, professor da Universidade da Carolina do Norte. “Para reverter a tendência, é preciso redesenhar a estrutura de incentivos para que os espaços virtuais favoreçam não apenas o consumo, mas também a cidadania.”

Os principais desafios da democracia abordados pelo festival – e como a tecnologia pode ajudar a resolvê-los – podem ser reunidos em 3 grandes categorias.

O INEVITÁVEL:
atualizar os mecanismos de participação democrática

Para o cidadão médio, exercer a cidadania tem data e hora marcadas: no dia das eleições, por meio do voto. Em teoria, os eleitos ganham a legitimidade para representar a maioria. Esse mecanismo até funciona para definições de impacto em um território específico – como escolher o melhor modelo de previdência ou de educação pública de um país –, mas nesse modelo há sinais de crise. Em 12 nações ricas mapeadas pelo Pew Research Center, a insatisfação com a democracia atingiu um recorde de 64% em 2024, uma queda de 12 pontos percentuais em 3 anos. No SXSW, ficou claro que é preciso adotar novos dispositivos de representação para lidar com problemas complexos da sociedade atual.

Temas como mudança climática, governança tecnológica e política de imigração exigem cooperação internacional, eles não serão resolvidos apenas por governantes locais. Decisões pouco consensuais também são postergadas, pois os eleitos temem perder apoio. “A democracia precisa ser exercida diariamente, com mais instrumentos além do voto”, diz Josh Burgess, fundador da DemocracyNext, cuja missão é tornar mecanismos de consulta direta mais disseminados. 

Um modelo para isso são as assembleias de cidadãos, em que grupos estatisticamente representativos debatem temas e elaboram sugestões ao poder público, aprovando apenas as propostas com pelo menos 75% de apoio. Recentemente, uma assembleia coordenada pela DemocracyNext em Bend, Oregon, formulou 23 recomendações sobre a questão dos jovens sem-teto. No âmbito global, uma assembleia internacional de cidadãos está sendo organizada com o apoio do Brasil para propor diretrizes para a COP 30, que ocorrerá em novembro de 2025 na cidade de Belém, no Pará.

O URGENTE:
fechar a fratura social que inviabiliza o consenso

O conceito de polarização tem se mostrado insuficiente para caracterizar a cultura de aversão ao diferente nas redes. No SXSW, isso foi descrito como um abismo que coloca a democracia em risco. “Vivemos uma cultura de distraction by design, na qual são construídos labirintos informacionais que colocam as pessoas em rota de colisão”, diz Nora Benevides, da Free Press, especializada em mídia e tecnologia.

O evento trouxe experimentos que tentam resgatar a busca por consensos. Um deles, liderado pelo Institute for Citizens & Scholars, capacita líderes para facilitar conversas sobre temas controversos e promover a colaboração. “As novas gerações estão crescendo em um mundo onde aparentemente não é possível conciliar perspectivas diferentes, mas isso não pode ser aceito como verdade absoluta”, diz Rajiv Vinnakota, líder do instituto.

A iniciativa inclui parcerias com universidades, concessão de bolsas de pesquisa e workshops para empresas interessadas em fomentar a tolerância. A necessidade disso ficou evidente numa fala da senadora democrata Elizabeth Warren. Questionada pela jornalista Kara Swisher se se sentia ameaçada por ser uma das vozes mais críticas ao governo Trump, Warren respondeu: “Sabe qual é a parte mais difícil da pergunta que você fez? É que eu não quero respondê-la publicamente.”

O IMPORTANTE:
usar a tecnologia para resolver problemas imediatos

O SXSW é conhecido por valorizar iniciativas de gov tech, mas, em 2025, o foco esteve em como engajar cidadãos com tecnologias simples para resolver problemas urgentes.

A ex-ministra de Assuntos Digitais de Taiwan, Audrey Tang, compartilhou exemplos que a tornaram conhecida como “hacker cívica” pela imprensa internacional. Durante a pandemia, ela liderou a criação de um mapa interativo de disponibilidade de máscaras. Feito em código aberto, o mapa era atualizado pela própria população, convocada em campanhas de comunicação. Em 3 meses, um terço dos taiwaneses havia utilizado a ferramenta. “As pessoas adotam tecnologias quando percebem seu benefício coletivo”, afirma Tang. 

Outro exemplo é a rede social vTaiwan, que promove consultas públicas para fomentar participação cívica. “Precisamos usar a tecnologia para encontrar pontos em comum, não apenas para amplificar as contradições que inflamam os ânimos”, diz Tang. “Está na hora de criarmos mais algoritmos pró-sociais.”

No mesmo painel, o advogado brasileiro Ronaldo Lemos, fundador do Instituto Tecnologia e Sociedade, abordou a experiência do orçamento participativo no Brasil. Usado por governos locais desde os anos 1980, esse dispositivo social permite que a população decida sobre o destino de recursos públicos. Recentemente, um conselho da Presidência recomendou sua adoção no processo de feitio do orçamento federal. “A antropofagia cultural brasileira nos permite absorver ideias de todo lugar e criar soluções inovadoras”, diz Lemos. “Que isso inspire novos empreendedores cívicos a criar, testar e aperfeiçoar ferramentas de participação direta.”