Covid-19: crises, darwinismo digital e o novo normal

Futurista e escritora Martha Gabriel analisa os impactos da pandemia do novo coronavírus e destaca o potencial de momentos como esse para impulsionar a inovação e o empreendedorismo

Sim, fomos atingidos pelo tsunami Covid-19, que abruptamente invadiu nossas vidas, desencadeando uma onda cumulativa de crises simultâneas, em várias dimensões, que estão desnorteando a humanidade: saúde, informação e economia. Apesar de isso tudo parecer uma situação inesperada e imprevisível, na realidade essa pandemia (e suas consequências) já havia sido anunciada há anos, da mesma forma que o mar se recolhe antes do tsunami, sinalizando a chegada da onda.

Os efeitos catastróficos das pandemias são tão devastadores que elas são apontadas como uma das formas prováveis de o mundo acabar. No entanto, os alertas não foram suficientes para evitar a crise que se instaura agora no planeta, não nos deixando outra opção senão enfrentá-la.

Crises doem, sempre. Mas quando uma crise é global e apresenta características inéditas, como a pandemia atual, a sensação de dor tende ao terror, pois configuram-se cenários mais frágeis e incertos – formados por redes tecnológicas cada vez mais densas de conexões e interdependências mundiais, aumentando a complexidade do ambiente, e consequentemente, das soluções.

No entanto, por mais difíceis que as crises possam parecer, é importante lembrar que, se por um lado elas destroem, ao mesmo tempo algo novo emerge. Enquanto um sistema entre em crise, outro surge, e essa tem sido a dinâmica da evolução. Por exemplo, para que uma planta nasça, é preciso que a semente entre em colapso e morra; o aparecimento do ser humano na Terra se tornou possível devido à crise que, anteriormente, extinguiu os dinossauros; inúmeros produtos nasceram em crises de guerra.

Portanto, crises sempre trazem consigo ameaças e oportunidades, estabelecendo perdedores e vencedores, que se configuram em função de dois fatores principais: 1) a forma como a crise impacta os elementos do sistema (as bênçãos e maldições de uma crise não são distribuídas igualmente entre todos; ela pode ser favorável para uns e destrutiva para outros);  2) a capacidade que cada um possui de se transformar para se adaptar ao ritmo das mudanças impostas.

Assim, estamos todos na mesma onda, mas não na mesma situação – para alguns, ela é um impulso que alavanca; para outros, uma fúria que esmaga. Alguns possuem recursos para navegar ou surfar; outros não conseguem nadar. Quanto mais complexa uma crise, maior a quantidade de variações das combinações entre as dimensões de impactos causados e habilidades necessárias para solucioná-los.

O primeiro pilar: impactos da crise

Em termos de impactos, a Covid-19 afeta as diversas dimensões da sociedade de formas bastante distintas, em função de características das pessoas (como idade e sexo, por exemplo), das áreas de atuação (educação, entretenimento, varejo etc), da localização, das condições climáticas etc.

Por exemplo, na economia, cada setor tem sido impactado de forma diferente pela pandemia, como mostrado na figura abaixo (estudo realizado para o Egito, mas que simula situações equivalentes em outros países). A consciência do estado de crise e as medidas de distanciamento social adotadas para conter a disseminação do vírus alteraram imediatamente os hábitos de consumo, que determinaram vencedores e perdedores no curto prazo.

Além dos setores de atuação, outra dimensão que afeta sensivelmente a variação dos impactos econômicos da crise COVID19 é o tamanho das organizações, como mostra um estudo realizado em 2016 pelo JPMorgan Chase Institute – que avalia quanto tempo um negócio aguenta sem quebrar, caso não entrem mais recursos financeiros (imagem abaixo). Foram analisados 600 mil pequenos negócios, e a conclusão é de que metade sobrevive apenas 27 dias, e somente 25% consegue se manter por mais de 60 dias sem entrada de recursos. Esses números são dos Estados Unidos, mas trazem insights valiosos para qualquer país.

A natureza também tem sofrido impactos distintos em função da quarentena estabelecida em grande parte do planeta – se, por um lado, o animal humano sofreu restrições de movimento e atividades, outros animais ganharam espaço; enquanto  aumentam os níveis de estresse humano em função da separação social,  diminuem os níveis de poluição e o ritmo sísmico de vibração do planeta.

Aliás, ao desestruturar abruptamente os paradigmas sócio-econômico-ambientais mundiais, a quarentena de proporções globais criou um ambiente experimental inédito e singular para o estudo de cientistas e pesquisadores.

O segundo pilar: adaptabilidade

Portanto, se em um primeiro momento, a crise gera ameaças e oportunidades desiguais, em um segundo momento (durante e depois da crise), o que vai definir os vencedores e perdedores é o segundo fato: a capacidade de navegar a crise, minimizando ameaças e maximizando oportunidades que se apresentam. O grande desafio enquanto o tsunami está acontecendo, rompendo e reconfigurando regras e certezas, é conseguir se adaptar continuamente para sobreviver, se preparar para enfrentar o novo mundo que encontraremos depois que a água baixar, e prosperar no cenário que emerge.

Nesse processo, um efeito notável das crises é que até mesmo os perdedores, eventualmente, podem se beneficiar da jornada de transformação necessária para tentar vencer os desafios, o que favorece o desenvolvimento de inúmeras habilidades:

. Produtividade – a diminuição de recursos disponíveis, decorrente da mudança de paradigma causada pela crise, nos força a parar de desperdiçar recursos com supérfluos para podermos focar e investir esforços no que realmente importa. A reavaliação de processos nas organizações (e vida pessoal) torna-se prioritária, revelando gastos desnecessários. Por exemplo, caso passemos a fazer mais reuniões online, será que precisaremos manter tantas salas físicas de reunião e usar tempo e recursos para viagens de deslocamento de participantes? Restaurantes físicos que começaram a operar com sistemas online de delivery durante a crise continuarão a manter seus espaços físicos ou passarão a adotar soluções de dark kitchens?

. Crescimento – as adversidades da crise nos forçam a buscar nossas forças e potencialidades para enfrentar os desafios que se apresentam – habilidades que muitas vezes permanecem escondidas e inutilizadas em momentos confortáveis. Além disso, crises nos obrigam a aprender novas habilidades, que talvez nunca aprendêssemos em outras situações. No contexto atual, um exemplo disso são as empresas e profissionais que eram resistentes à transformação digital, mas que diante da quarentena se obrigaram a aprender a utilizar as ferramentas online, recorrendo ao seu potencial para adquirir novas competências.

. Autoconhecimento – no processo de buscar soluções durante uma crise, somos obrigados a nos reconectar com a nossa verdadeira essência para avaliarmos as ferramentas internas que possuímos (ou não) – forças e fraquezas. Essa reflexão e experimentação de habilidades nos permite ampliar o nosso autoconhecimento, nos proporcionando um controle maior sobre nós mesmos, melhorando, assim, nossa tomada de decisão. Esse é o caso de inúmeras pessoas e organizações hoje, que, apesar de contarem anteriormente com estruturas tecnológicas para realizar reuniões, vendas ou trabalho à distância, não as utilizavam. No entanto, a partir da quarentena, precisaram desencadear um processo de análise interna e conhecer melhor esses recursos, revelando necessidades para complementá-los ou melhorá-los. Uma das principais constatações gerais desse processo é a fragilidade da segurança dos sistemas e dados.

. Colaboração – as dificuldades dos momentos de crise nos tornam mais frágeis, fazendo com que precisemos mais uns dos outros para conseguirmos sobreviver. A fartura exalta nossas diferenças; as crises unem nossa humanidade. Um exemplo disso na crise atual é a iniciativa liderada por Edi Mariano, da Associação Brasileira Online to Offline). O programa reúne em um grupo de WhatsApp 52 fundadores, presidentes e executivos de grandes e médias empresas e instituições, que se unem a médicos para ajudar voluntariamente no combate ao novo coronavírus, oferecendo suporte, inteligência, estratégia e conexões.

. Criatividade – por exigirem novas soluções para situações adversas ou inéditas, as crises são grandes incentivos para abandonarmos o status quo, fomentando a inovação e o empreendedorismo. No momento atual, em função do distanciamento social adotado para conter a pandemia, duas soluções criativas surgiram no Japão para a realização das cerimônias de formatura e graduação: a primeira foi realizada online dentro do jogo Minecraft; a outra, por meio de robôs que atuavam como avatares dos formandos.

Essa jornada de transformação desencadeada por uma crise caracteriza um processo de seleção natural, em que vencem os elementos (indivíduos e organizações) que mais rapidamente se adaptam – o Darwinismo em ação.

Darwinismo digital & o novo normal

Crises passadas nos ensinaram que inúmeras mudanças estruturais, comportamentais e de consciência que ocorrem durante a crise tornam-se residuais, permanentes. O resultado disso é o surgimento de um novo ambiente no pós-crise, um novo normal. Por exemplo, depois da crise hídrica que aconteceu no estado de São Paulo entre 2014 e 2016, a consciência da população sobre o funcionamento do ciclo hídrico e os hábitos de utilização de água mudaram e permaneceram: banhos mais curtos, fechamento de torneiras nos intervalos de escovação de dentes etc.

Mais especificamente, focando na situação atual, o mundo que encontraremos no cenário pós-crise Covid-19 tende a trazer transformações estruturais e sociais importantes, mesmo depois da recuperação econômica, estabelecendo o nosso próximo novo normal. Não se pode prever como será essa nova realidade, pois, além da crise ainda estar em andamento, ela é extremamente complexa e, consequentemente, repleta de incertezas. No entanto, sabemos que algumas coisas certamente farão parte do nosso novo normal:

. Ele será diferente.

. Contará com um aumento da consciência sobre pandemias e saúde pública.

. Apresentará comportamentos residuais da low touch economy, que floresceu durante a crise – como, por exemplo aumento do trabalho remoto, e-commerce, utilização de robôs de entrega, fiscalização de saúde e hábitos de higiene, entre outros.

. Acentuará o Darwinismo digital. A crise da Covid-19 causou uma aceleração dos processos de transformação digital no mundo, tanto de indivíduos quanto de organizações, reduzindo o tempo disponível para adaptação. Se, antes, a necessidade de adquirir domínio digital já era importante, a crise o tornou urgente e vital para vencer no novo normal.

Escrevo esse texto na terceira semana de quarentena em São Paulo, no meio dessa crise que, em pouco tempo, já virou o mundo de cabeça para baixo. Provavelmente ainda teremos muito chão pela frente até superarmos os desafios que continuam surgindo. Assim, termino esse texto com uma frase de Jeff Bezos para inspirar as nossas próximas ações nesse caminho:

“Reclamar não é uma estratégia.
Você deve trabalhar com o mundo como ele se apresenta,
não como você gostaria que fosse”

Avaliação, estratégia e ação – dinamicamente, o tempo todo, dia a dia, passo a passo. #tamojunto

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Martha Gabriel é futurista pelo IFTF (Institute For The Future), engenheira (UNICAMP), pós graduada em Marketing (ESPM) e design (Belas Artes), mestre e PhD em artes pela ECA/USP, e tem formação executiva pelo MIT Sloan. Autora de best-sellers como os livros Você, Eu e os Robôs, Marketing na Era Digital e Educar: A Evolução Digital (R) na Educação, tendo sido duas vezes finalista do Prêmio Jabuti. CEO da Martha Gabriel Consultoria. Professora de Inteligência Artificial da PUC-SP, leciona também nas melhores escolas de negócios do Brasil, incluindo Insper e Fundação Dom Cabral. Embaixadora no Brasil da ONG Geek Girls LatAm.