Corresponsabilidade: a emergência do engajamento coletivo

Apesar de IA ter sido o tema da vez, o SXSW 2023 também destacou a importância da mobilização humana em torno dos desafios atuais

Ao longo dos dez dias de SXSW 2023, vozes trans, indígenas, negras e outras distantes do Norte Global foram se somando – pelas laterais dos grandes salões, na maior parte das vezes – num grande coro que, em uníssono, nos chama a repensar o que deveríamos, de fato, estar fazendo com nosso tempo, poder de influência e capacidade de mobilização. 

Em comum, a visão de que a saída para problemas complexos é coletiva. E que a emergência desse engajamento é que nos permitirá transformar amanhãs. A visão encontrou eco em um dos painéis que costuma atrair mais espectadores e holofotes: o da futurista Amy Webb, do Future Today Institute. Ao finalizar sua apresentação, Webb se disse esperançosa com o nosso futuro. “Por causa de vocês. Nós todos queremos um futuro melhor, então temos que trabalhar juntos nas tendências certas e nas convergências”, defendeu. 

Numa camada mais filosófica, Gordon Wheeler, psicólogo que trabalha com desenvolvimento humano, enfatizou a importância do modelo coletivo em detrimento do individualismo, ressaltando que somos criativamente únicos, mas absolutamente relacionais enquanto comunidade. A fala se deu no painel “Inhabiting the Story of Our Future”, em que Wheeler e outros especialistas dissecaram como nossas histórias pessoais e em grupo podem nos ajudar a reimaginar e reparar o mundo, para criar um futuro compartilhado que seja melhor para todos.

Esse discurso ressoou por diferentes painéis e trilhas, como na sessão protagonizada por Boyan Slat, fundador da organização sem fins lucrativos The Ocean Cleanup, cuja missão é retirar lixo plástico dos oceanos. Ele passou os últimos anos testando formas de atingir esse objetivo. E entendeu que só a colaboração de sua instituição com empresas globais, governos e organizações de atuação local permitirão atingir a meta de, em 10 anos, remover 80% dos plásticos dos oceanos.

“Se você olhar para o movimento ambiental hoje, as vozes mais proeminentes se concentram nos problemas, e não nas soluções: o foco é convencer as pessoas a pararem de fazer certas coisas. Com The Ocean Cleanup, criamos um símbolo de como podemos construir o futuro que almejamos, em vez de apenas lutar contra as coisas das quais discordamos”
Boyan Slat, fundador da organização The Ocean Cleanup

Boyan Slat. Crédito: Getty Images for SXSW/Divulgação

O exemplo da iniciativa privada

Uma conversa sobre ativismo corporativo reuniu executivos de empresas que têm se posicionado mais abertamente em discussões públicas para, assim, aglutinar mais pessoas em torno de causas sociais e políticas. Uma delas é a Ben & Jerry’s. Em torno do tema flavors for social justice (algo como “sabores pela justiça social”), a marca lança edições limitadas de seus sorvetes, com sabores vinculados a causas como a importância do voto – provocando conversas sobre o tema e mobilizando eleitores. 

Por sua postura firme com relação a direitos civis e políticos, a empresa já foi acusada de ser antiamericana e até de praticar terrorismo. Segundo Christopher Miller, líder global de estratégias de ativismo da Ben & Jerry’s, esse tipo de reação dura costuma ser sinal de que as ações da marca, pertencente à Unilever, têm causado efeito. Mas é preciso construir resiliência corporativa – algo que cresce conforme mais pessoas se juntam à frente de batalha. É, também, uma forma de as empresas produzirem parte da reparação dos problemas que elas próprias ajudaram a criar no mundo, ao longo de décadas passadas.

O poder do storytelling

Se junte a quem faz. E conte as histórias dessas pessoas. Esse foi o recado que o chef espanhol José Andrés deixou para a plateia do SXSW 2023, durante o keynote “The Stories We Tell Can Change the World”. Andrés é fundador da World Central Kitchen, organização que serve refeições para pessoas de regiões atingidas por desastres naturais e guerras. 

A organização conta com voluntários ao redor do mundo e consegue se mobilizar rapidamente. Um dos motivos é o engajamento gerado pelas histórias que se entrelaçam no movimento – e mostram quem está, efetivamente, combatendo a fome. “É disso que precisamos, de pessoas que fazem acontecer. Agora. Neste momento. E não de quem só faz prometer”, afirmou.

Andrés também defendeu o storytelling como ativismo no sentido de que, ao contextualizar o problema da fome, é possível impactar políticas públicas. “Quantas vezes são realizadas conferências sobre fome em que as pessoas ouvidas nunca passaram fome? Como vamos achar soluções para os problemas se não escutarmos as histórias das pessoas que, de fato, vivem esses problemas?”, pontuou. 

“Estamos num momento, neste começo de século 21, em que as pessoas precisam se juntar e se apoiar. Precisamos escrever novas receitas. E correr mais riscos. Porque se não corremos riscos, não criamos novas receitas. E as velhas já não são boas o suficiente para melhorar o mundo em que vivemos” 
José Andrés, chef e fundador da organização World Central Kitchen

José Andrés. Crédito: Getty Images for SXSW/Divulgação

Gen Z na luta por democracia

A defesa da democracia, de forma ampla e em âmbito global, também esteve presente em diferentes sessões do SXSW 2023. Numa delas, com jovens ativistas que lutam para proteger a democracia num contexto pós-Trump nos Estados Unidos, a organização Gen Z for Change, destacou a necessidade de criar narrativas que unam as pessoas em torno da causa e as façam querer lutar. “Não dá para esperar a tocha ser passada para você. É preciso ir lá e tomar a tocha”, argumentou Olivia Julianna, fundadora da instituição.

Colaboração global

A importância de garantir a representatividade de diversas culturas no universo do entretenimento, por meio do trabalho colaborativo, foi abordada pela atriz e produtora Priyanka Chopra Jonas, que também é embaixadora global da UNICEF. Ela discutiu o tema a partir da série Citadel, em parceria com a Amazon, que está sendo apresentada como uma franquia global. O projeto contará com séries interligadas ao enredo principal, filmadas ao redor do mundo, com idiomas e produções locais. Duas delas já estão em andamento, uma na Índia e outra na Itália. “Não se trata apenas da aparência, mas da maneira como você fala, do idioma que usa, do país em que cresceu… A verdadeira globalização representa cada parte do mundo”, enfatizou.

Como combater o mindset de bilionário

No SXSW 2023, o escritor e pesquisador Douglas Rushkoff criticou as fantasias separatistas dos bilionários do setor de tecnologia, com seus bunkers e afins, e defendeu mais socialização e conexão humana. Segundo ele, é preciso sair do industrialismo digital extrativista para um modelo social mais comunitário, com mais interação e mais cuidado uns com os outros. Para combater o que chama de “mindset de bilionário”, ele sugere quatro intervenções: 

1. Desnaturalizar o poder, de forma que as pessoas parem de aceitar construções sociais criadas para manter determinadas agendas e relações de poder.

2. Estimular as pessoas a agirem por conta própria, compreendendo que elas estão no comando e podem programar a realidade segundo suas próprias especificações. 

3.  Ressocializar as pessoas – o que significa ir contra a “religião” do Silicon Valley e buscar mais conexão e colaboração com os outros. 

4. Cultivar o alumbramento e a admiração pelo outro. Isso significa migrar do rush da dopamina provocado pelos constantes alertas da tecnologia para o rush de oxitocina derivado da conexão com os outros, de experiências sociais de fato.