Amor e sexo em tempos de pandemia

Isolamento social impulsionou encontros virtuais e vendas de sex toys. Setor sinaliza significativas mudanças de comportamento, e as marcas precisam acompanhar essa onda crescente de disrupção

Entre os tantos impactos da COVID-19 está a crescente mediação digital do amor e do sexo. As medidas de distanciamento social adotadas durante a pandemia impulsionaram encontros virtuais e sexo à distância – acelerando um movimento que vinha se expandindo gradualmente nos últimos anos e indica profundas transformações na forma como nos relacionamos.

As marcas que quiserem fazer parte dessa conversa precisam abraçar essa disrupção, em sintonia com os novos comportamentos e expectativas dos consumidores. Três aspectos são preponderantes nas transformações que envolvem o futuro do amor e do sexo – todos convergindo e se influenciando mutuamente.

O primeiro é a evolução tecnológica de forma ampla. Tecnologias como inteligência artificial (AI), realidade virtual (VR), machine learning e internet das coisas (IoT) vêm abrindo possibilidades antes impensáveis na forma como lidamos com nossos corpos e nossos parceiros.

O segundo, de certa forma uma consequência do primeiro, é um mundo cada vez mais orientado por dados – o que possibilitará análises muito mais complexas sobre o modo como nós, humanos, levamos nossa vida sexual.

O terceiro, e talvez mais impactante, é humano, deveras humano: a transformação geracional radical que a Geração Z traz consigo sobre sexualidade, muito mais fluida, complexa e desapegada de grandes definições.      

. O Tinder atingiu um recorde de swipes em um único dia, com mais de 3 bilhões de deslizadinhas no dia 29 de março. O uso do app vem crescendo entre pessoas com menos de 30 anos.

. O Bumble, um dos primeiros aplicativos de encontro a oferecer a possibilidade de fazer chamadas de vídeo, registrou um aumento global de 56% no uso desse recurso, na última semana de março.

. Durante o lockdown, as receitas com a venda de sex toy cresceram bastante em alguns países europes. As metas projetadas foram superadas em 300% na Espanha, em 124% na Itália, e em 94% na França.


Sextech: um mercado de US$ 40 bilhões

A evolução tecnológica abriu espaço para a explosão do mercado de sextech que, segundo a consultoria Stratistics, gira em torno de US$ 40 bilhões e pode chegar a US$ 122 bilhões até 2026. É uma indústria que oferece soluções para o que se convencionou chamar “sex wellness industry“, incluindo produtos conectados e  redes de realidade virtual focadas em sexo. Entre as opções já oferecidas aos consumidores estão:

. Relações afetivas entre humanos e inteligência artificial, com uma holografia dando corpo à voz, como oferece a Gatebox.

. Robôs para se relacionar e fazer sexo, como os que são comercializados pela RealDoll.

. Peças de design que se convertem em vibradores, como os produtos Crave.

. Sexo à distância com níveis muito realistas, com os aparelhos Kiiro, por exemplo.

. Novas possibilidades de sexo virtual com avatares, por meio de games de sexo.

Por um lado, essas inovações são apresentadas como respostas para a solidão e para os relacionamentos à distância. Por outro, levantam questões sobre as implicações de fazer sexo com um robô ou de criar vínculos emocionais com uma inteligência artificial. Não estamos falando de dilemas para daqui a 100 anos, mas de discussões que já estão sendo travadas hoje

Holografias customizadas da Gatebox evocam relações afetivas entre humanos e inteligência artificial.


Futuro feminino

Uma das visionárias desse mercado é Bryony Cole, australiana que é uma conectora da indústria de sextech e criadorado podcast Future of Sex. Ela seria uma das speakers do SXSW 2020, onde discutiria o futuro do sexo e da intimidade – o evento foi cancelado devido ao novo coronavírus.

Desde 2016 neste segmento, Cole produz conteúdo de qualidade sobre o tema e constrói pontes entre profissionais da área, como uma série de hackatons para (re)pensar produtos que solucionem desafios da vida sexual das pessoas – de artefatos eróticos que atendam a idosos vivendo em asilos a vibradores discretos e não-fálicos, que buscam desafiar a lógica do pênis como elemento central da vida sexual. Ela destaca cinco campos promissores dentro de sextech: sexo remoto, robôs, conteúdo imersivo, realidade aumentada e sexo virtual.

“As três grandes oportunidades de disrupção em tecnologia hoje são sexo, cannabis e blockchain. Ironicamente, os investidores estão pulando apenas nas duas últimas categorias”

Cindy Gallop, publicitária, ativista e criadora do primeiro venture capital para o setor de sextech, em depoimento para The Future Today Institute.


A transformação desse mercado, é importante dizer, é liderada por mulheres. Em 2016, havia cerca de 30 mulheres liderando lançamentos na indústria; em 2019, mais de 200. “Quando falamos de sextechs, bem-estar sexual e femtechs, a maioria do mercado é liderado por mulheres; a maioria das fundadoras são mulheres”, afirma a empreendedora Andrea Barrica no livro Sex Tech Revolution – The Future of Sex Wellness (Lioncrest Publishing), lançado no ano passado. Muitas das mulheres à frente de negócios na área são profissionais que decidiram entrar neste mercado para criar produtos para elas mesmas. 

Este ponto é fundamental para entender o impacto que terá a chegada da geração Z à idade adulta. Uma pesquisa da Box 1824 e da McKinsey sobre os “Zs” revelou dados bem interessantes. Estamos diante de um target populacional que mudou o código de distinção entre gêneros, entendendo que questões vistas como barreiras por gerações anteriores representam, na verdade, um espectro amplo pelo qual se pode navegar – e constituem mais uma soma do que uma divisão.

No que diz respeito especificamente ao sexo, vários jovens entendem, por exemplo, que isso pode ir muito além da relação sexual entre dois corpos. Quando este público consolidar seu poder de influência em relação às gerações anteriores, deve explodir o consumo de produtos e serviços que atendam a essa gama bem mais ampla de possibilidades.

Documentário The Future is Fluid, comissionado pela Gucci, mostra como jovens em mais de 10 países vêm criando uma nova relação com o amor e o sexo.


Big data do sexo

Essas mudanças de comportamento, somadas às inovações trazidas pela tecnologia, devem permitir, pela primeira vez, um panorama massivo de dados sobre nossos hábitos sexuais. Isso pode ser bom, se lembrarmos que a história de como lidamos com o sexo, do ponto de vista estatístico-científico, é um campo pouco ou nada conhecido. “Há pouca coisa de valor real sobre a vida sexual dos nossos antepassados”, escreve o médico Druin Burch em seu mais recente livro, The Shape of Things to Come: Exploring the Future of Human Body (Apollo, 2019).

Por outro lado, há novos riscos, como a exposição de dados pessoais e uso indevido de devices. Toda uma miríade de crimes podem passar a existir a partir de novas dimensões tecnológicas. Um app criado para controlar vibradores remotamente já teve os padrões de uso dos usuários vazados. Em outro caso grave, uma plataforma online de reservas em motéis, no Japão, expôs involuntariamente informações de reservas e dados pessoais de seus clientes.

Debate ético

Uma reflexão importante sobre essa evolução tecnológica é o quanto seremos capazes, do ponto de vista ético e moral, de acompanhar esses novos cenários. Vamos achar OK usar robôs para fazer sexo, ou estamos diante de escravos sexuais inanimados? Vamos nos esconder atrás de gadgets para não enfrentar as dores dos relacionamentos ao vivo?

E, olhando para a sociedade de forma mais ampla, o quanto não seremos refreados pelo crescente conservadorismo mundo afora? Se pequenas conquistas do universo LGBTQIA+ já impulsionam reações conservadoras, o que dizer de conectar evolução tecnológica a comportamentos sexuais progressistas, num mundo em que sequer direitos mínimos para grupos minorizados estão assegurados?

Manifesto do prazer, da Crave. A marca produz peças de design que se convertem em vibradores.

A discussão ética é preponderante sobre como será o futuro do sexo. Estamos prontos, enquanto sociedade, para evoluir para um cenário em que a tecnologia permitirá que mais pessoas tenham suas necessidades atendidas e seus desejos satisfeitos? Se estivermos, precisamos, ainda, lembrar dos novos dilemas que surgirão.

Um efeito positivo apontado por executivas, reportagens e análises da indústria de sextech é que, conforme essas evoluções de produtos vão se tornando mainstream, narrativas não-dominantes passam a ter um peso maior em contextos sociais ainda majoritariamente conservadores, patriarcais e falocêntricos.

Em resumo, o que temos diante de nós é um futuro mais complexo, porém mais destravado e cheio de possibilidades, com mais ou menos tecnologia embarcada. Acima de tudo, caminhamos para um cenário em que a experiência do usuário, ao ser colocada em primeiro lugar, pode fazer com que o sexo seja, apenas, sobre o quanto nos faz sentir bem. E não sobre todo o resto.