O futuro das narrativas de marca

Ciência, tecnologia e empatia são as bases das histórias do amanhã. E é tudo muito mais simples do que você pode imaginar

Você se lembra das histórias marcantes de 10 anos atrás?

Nas telas de 2008, o mundo conheceu o submundo de Mumbai através do olhar de um jovem indiano no mínimo ambicioso. Um ícone da resistência gay americana dos anos 70 ganhou sua cinebiografia definitiva. E o curioso caso de um bebê que já nasceu velho colocou à prova nossas certezas sobre o que é importante na vida.

Na música, os fãs de rock celebravam a chegada de Death Magnetic, do Metallica; os de pop, a estreia de Duffy nas paradas; e os de indie, o terceiro álbum de Keane.

Com as notícias, aprendemos o significado de subprime na esteira da pior crise econômica desde 1929. Um certo senador de Illinois foi alçado à presidência dos Estados Unidos — ao mesmo tempo que, numa ilha caribenha a poucos quilômetros da Flórida, uma figura histórica renunciava ao comando da última resistência comunista da América Latina.

As histórias fortes da ficção ou da realidade não precisam de muitas referências. Seus personagens são tão emblemáticos que dispensam apresentações.

Não é à toa que escolhemos 2008 como ponto de partida para começar esta história.

Em 2008, nasceu em Nova York a rede Future Of Storytelling. Criada pelo editor de livros Charles Melcher, fundador da Melcher Media, o FoSt surgiu para reunir mentes criativas ansiosas por aplicar tecnologias emergentes às histórias do futuro.

O momento era propício

2008 marcou a chegada do iPhone aos mercados internacionais — e foi também quando surgiu a Apple Store. Pode parecer pouco, mas esses dois eventos mudaram completamente a forma como construímos narrativas desde então. Nada mais pode ser pensado sem a perspectiva da tela individual.

Movidos pelos avanços em campos distintos da ciência e da tecnologia, nos últimos 10 anos vimos as possibilidades de criação proliferarem em um turbilhão de ideias prontas para ser executadas. Recursos, há de sobra.

Mas nem todo avanço se dá sem algum retrocesso. Os mesmos algoritmos que forjam a inteligência artificial que nos alimenta são usados para reforçar o viés de preconceito que nos distancia.

Em nenhum outro momento fomos tão bombardeados com histórias falsas que distorcem a visão do mundo real. Líderes populistas ganharam voz como resultado desse fenômeno. Países inteiros experimentam o recrudescimento do autoritarismo. Qual é o tamanho exato da atual crise da democracia?

Foi com essas provocações que, no início de outubro, cerca de 500 integrantes da comunidade do FoSt se reuniram no Snug Harbor Cultural Center, em Staten Island, Nova York, para seu encontro anual.

Ao longo da programação, os convidados, que passaram por uma seleção, participaram de mesas redondas com figuras tão distintas quanto Darren Aronofsky, diretor de Mãe e Cisne Negro, Anil Seth, professor de neurociências da Universidade de Sussex, e Christopher Wyllie, o homem que abriu a caixa preta da Cambridge Analytica. Houve ainda workshops para testar novas tecnologias e exibições de diferentes formatos de storytelling.

A narrativa central do evento girou em torno da hashtag #SaveTheStories, uma convocação para que os storytellers do mundo todo resistam ao avanço de todo e qualquer tipo de manifestação de censura e ameaça.

Storytellers, uni-vos! A partir de agora, resistência e criatividade – como em poucos momentos da História – vão andar lado a lado. A seguir, você vai conhecer os principais insights deste evento exclusivo e entender por que a ciência, a tecnologia e a empatia vão moldar as histórias do amanhã.

Insights
Narrativa back to basics

A profusão de tecnologias criou a ideia de que boas narrativas precisam ser mirabolantes. Mas o simples ainda em seu espaço, e ele é nobre

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Em meio à intensa programação de um evento como o FoSt, que tem sessões disputadas e um ritmo alucinante, uma pausa para conversar. A interlocutora não é alguém com quem você anseia fazer networking – mas ninguém menos que Mrs. Clarissa Dalloway. Ela pega você pelo braço e conta como estão os preparativos para a festa que dará à noite em sua casa, uma simples desculpa para falar de lembranças da vida e mergulhar em seu inconsciente.

Mrs. Dalloway, a principal personagem de Virgínia Woolf, era apenas uma das figuras emblemáticas espalhadas pelo FoSt. Ela estava lá para lembrar que as histórias que se perpetuam não necessariamente foram feitas com recursos apurados de tecnologia.

A volta ao simples não pode ser confundida como uma ode ao superficial. É justamente o contrário. Por trás dela está a ideia de que histórias extremamente elaboradas sobrevivem por si só. Os formatos são variados: a narrativa de um livro, uma peça de música clássica, um rap improvisado com as ideias que pairam no ar.

Quem melhor traduziu essa ideia entre os convidados do FoSt foi o ator Neil Patrick Harris, que participou de uma mesa redonda no primeiro dia do evento. “Como produtor e diretor, sou um entusiasta da tecnologia”, disse ele. “Como ator, no entanto, peço que vocês sempre usem a tecnologia para impulsionar o potencial humano, e não para substituí-lo.”

Em um evento que celebra a tecnologia como propulsora das boas histórias, nada mais importante do que lembrar que a narrativa ainda pulsa de verdade na máquina mais poderosa de todas: a mente criativa dos humanos.

Insights
É o design, estúpido!

 

A forma como guiamos a audiência em nossa narrativa é muito mais que uma questão estética. É uma escolha política e ética

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Em março de 2018, o jornal britânico The Guardian publicou uma das histórias mais impressionantes do ano. Seu enredo destrinchava a forma como a consultoria britânica Cambridge Analytica utilizou dados coletados num inocente teste de Facebook para entregar mensagens específicas com conteúdo político aos usuários da rede social. Detalhe: a narrativa era moldada de acordo com o perfil psicológico do eleitor, gerando medo, ira, apreensão.

As investigações, que se alastraram pela imprensa, revelaram que o mecanismo foi usado para influenciar as eleições presidenciais americanas de 2016 e a votação do Brexit, em 2017. Foi um pesadelo para o Facebook: da noite para o dia, a empresa perdeu 35 bilhões de dólares em valor de mercado .

Um dos pivôs do escândalo foi o cientista de dados canadense Christopher Wylie, que participou de uma mesa exclusiva do FoSt. Sua presença no evento tinha um motivo específico: nos últimos meses, Wylie tem se dedicado a levantar a bandeira do design ético como forma de evitar que a proliferação de dados gere um efeito nefasto em nossas vidas.

Mas qual é a principal reivindicação de Wylie? Para ele, a forma como desenhamos a experiência do usuário em nossas plataformas e narrativas é uma escolha política. A audiência não está 100% consciente dos riscos que corre ao clicar “aceitar” nos termos de compromisso de um aplicativo que colhe, indevidamente, seus dados privados. Wylie, portanto, defende que a responsabilidade individual é limitada.

“Hoje em dia é difícil socializar e até achar um emprego sem estar nas redes sociais”, diz ele. “As empresas e os indivíduos responsáveis por criar a experiência de navegação deveriam se comprometer em proteger a audiência da manipulação.”

Insights
Consciência traidora e aliada

Os avanços no campo da neurociência nos permitem entender, cada vez mais, os mecanismos do cérebro. Como isso pode ser usado a favor das histórias?

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Alguns anos atrás, um polêmico vestido tomou conta das redes sociais. Você é do grupo dos que viam azul ou amarelo? Saiba que não tem ninguém maluco nessa história.

Nas últimas 3 décadas, os estudos em neurociências aprofundaram o entendimento do que faz nosso cérebro funcionar. Uma questão, em especial, tem ganhado muito destaque: o que faz de nós, humanos, seres tão diferentes de outros bichos com sistemas nervosos igualmente complexos?

Parte da resposta está na consciência, o mecanismo que nos faz tomar decisões, formular interpretações, acreditar ou discordar de ideias.

No FoSt, a neurociência e o estudo da consciência vieram com tudo — e com uma ideia difícil de digerir. Anil Seth, um professor da Universidade de Sussex que estuda o tema há anos, chega a afirmar que não existe realidade. O que existe, na verdade, é uma alucinação com a qual todos nós concordamos.

Como assim? Seth defende a tese de que o cérebro é uma máquina preditiva que, às vezes, nos engana. Um exemplo clássico, como o do vídeo abaixo, mostra como a ideia pré-concebida de que um objeto faz sombra sobre um tabuleiro gera a impressão errada de que há um ponto mais escuro do que o outro. A verdade é que os dois pontos são idênticos.

O impacto disso na construção de narrativas é imenso. Ao trazer para o processo de storytelling equipes multidisciplinares — com neurocientistas, biólogos e filósofos — é possível trabalhar com nuances do pensamento antes pouco exploradas. Esse esforço é potencializado em histórias contadas com a ajuda de tecnologias de Realidade Virtual e Realidade Aumentada. O labirinto da nossa mente, acredite, é muito mais fértil do que você imagina.

Insights
Humanos sem carne e osso

As interfaces cérebro-máquina não são mais coisa de filme de ficção científica e vieram para ficar. É fato: as histórias memoráveis do futuro podem vir de robôs

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A ideia de que humanos e máquinas em algum momento vão virar uma coisa só já foi amplamente retratada em histórias memoráveis — basta lembrar de Her, Ex-Machina ou Black Mirror. O que surpreendeu os participantes do FoSt é a vivacidade com que as novas interfaces simulam o espectro humano hoje em dia.

O sistema neural artificial criado pelo neozelandês Mark Sagar, e sua BaxyX (vídeo abaixo), por exemplo, são de deixar qualquer um atordoado. Sagar é professor da Universidade de Auckland e CEO da Soul Machines, e está empenhado em criar simulacros humanos em programas de computador.

E ele está conseguindo. A Baby X, inspirada em sua filhinha, parece mesmo uma máquina com alma. Ela chora ao se sentir sozinha, sossega ao ouvir uma história e faz até birra.

Pesquisadores como Sagar ultrapassam a barreira segundo a qual a consciência é algo exclusivamente humano. “Acredito ser uma questão de tempo para gerarmos sistemas com algum tipo de consciência”, disse ele em sua mesa no FoSt. “Será uma consciência diferente da nossa, obviamente, mas ainda assim uma consciência.”

A discussão que se levanta diante disso está no plano da ética. Se sistemas são capazes de sentir, também serão capazes de sofrer? Eles oferecem ameaças? São questões em aberto.

Uma coisa, no entanto, é dada como certa. Cada vez mais, sistemas inteligentes serão aliados dos criativos para criar histórias que surpreendam a audiência. As definições de “mind blowing”estão sendo atualizadas.

Insights
Tecnologias para arrepiar

Por mais avançadas que possam ser, as máquinas nunca vão sentir como nós os efeitos de uma boa história. Como usar a tecnologia para ampliar os sentidos e gerar empatia?

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Se o mundo do futuro vai contar com ciborgues e híbridos de homem-máquina, qual é o destino de gente como nós? Para a britânica Grace Boyle, criadora da The Feelies, o que nos espera é de arrepiar — no bom sentido.

Na verdade, é de arrepiar, de ouvir cheiros, de apalpar sons, de sentir o gosto do que se vê. Grace acredita que, por meio do storytelling, é possível ativar 33 sentidos humanos. “Por muito tempo contamos histórias presas aos 5 sentidos que mais conhecemos. Mas quem nunca sentiu, por exemplo, a sensação de borboletas no estômago?”, questiona ela.

No ano passado, Grace lançou, junto do compositor e diretor indiano A. R. Rahman, o filme Le Musk (vídeo abaixo), sobre a vida de uma perfumista. Le Musk foi totalmente construído para ser uma experiência multissensorial — as exibições são feitas em salas especiais com recursos de realidade virtual.

Quem está criando uma nova fronteira para o controle dos sentidos é a neurocientista Vivienne Ming, uma das presenças mais aguardadas do FoSt. Em suas pesquisas, Vivienne explora os chamados “neuroprostéticos”, dispositivos que mapeiam os impulsos nervosos do cérebro e os reproduzem em sistemas de inteligência artificial.

Seus anseios são corajosos. Vivienne flerta com a ideia de desenvolver um aplicativo a partir do qual poderemos modular nossos sentimentos. Imagine, por exemplo, poder regular seus níveis de atenção para concluir um trabalho com mais foco. Ou elevar ao máximo seu nível de sensibilidade poucos instantes antes de ouvir uma sinfonia de Beethoven.

Capacidade é o que não falta. Vivienne já desenvolveu um sistema para trackear os picos de insulina de seu filho diabético e abriu o código para que outros pais evitem crises de hipo ou hiperglicemia. Também criou um sistema de reconhecimento facial para pessoas autistas – o que permite o desenvolvimento e o exercício da empatia em muitas delas.

Frequentemente, Vivienne é questionada sobre o limite de seus experimentos. A quem a critica, ela rebate com um argumento forte. “As pessoas têm medo de um futuro em que humanos e máquinas travarão uma guerra. Meu medo é outro. O avanço da tecnologia é inevitável, e eu temo que apenas uma pequena parte a use para dominar o resto das pessoas.”

Insights
Storytellings do ano

Como os trabalhos selecionados para o FoSt For Good e os vencedores do FoSt Prize usam Realidade Virtual e Realidade Aumentada para perpetuar histórias incríveis

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Anualmente, o FoSt organiza duas mostras paralelas: o FoSt For Good, para o qual organizações sem fins lucrativas são convidadas a mostrar como comunicam suas causas de formas inovadoras, e o FoSt Prize, a mostra competitiva do encontro. Na mostra competitiva, são indicados trabalhos em duas categorias: Inovação em Storytelling e Construindo Pontes.

Selecionamos 3 trabalhos para você ficar de olho.

Enter The Room
Na mostra FoSt For Good, o destaque veio da Cruz Vermelha Internacional, que construiu uma experiência de realidade virtual para simular o quarto de uma criança atingido pelos bombardeios em Aleppo, na Síria.

Quem tem iOs pode baixar o aplicativo Enter The Room e fazer a simulação em casa. A experiência é uma prova de que histórias bem construídos, aliadas à tecnologia, são capazes de nos transportar a realidades extremamente difíceis de ser reconstruídas.

The Horrifically Real Virtuality
Esta experiência imersiva foi a vencedora da categoria Inovação em Storytelling do FoSt 2018. Criado pela produtora francesa DV Group, dirigida por Marie Jourdren e exibido na Bienal de Veneza, o filme mistura elementos de realidade virtual e realidade aumentada para fazer uma homenagem o cinema.

A cada exibição, 6 pessoas interagem com os personagens da história, o diretor Ed Wood (tachado como o pior cineasta do mundo nos anos 50) e Bela Lugosi, um dos primeiros intérpretes do Drácula. Ao longo de 45 minutos, os espectadores co-constroem a história dos personagens e têm seus sentidos desafiados num storytelling surpreendente.

I Am A Man
O vencedor da categoria Construindo Pontes é um trabalho independente do diretor e designer Derek Ham em parceria com a produtor Oculus. I Am a Man também é uma experiência imersiva de realidade virtual que guia o espectador numa visita aos momentos icônicos da luta por igualdade racial nos Estados Unidos da segunda metade do século XX.

É possível, por exemplo, “empunhar” cartazes nas manifestações de 1968 ou acompanhar os discursos de Dr. Martin Luther King Jr. O resultado é uma prova do poder do storytelling de permitir que toda e qualquer pessoa tome contato com situações que permeiam a identidade negra. I Am A Man é um convite à empatia — e quem aceita é profundamente impactado.

Veja todos os indicados ao FoSt Prize 2018 AQUI.

5 takeaways do FoSt 2018

#1 Prepare-se para usar o cérebro

No atual ritmo dos estudos em neurociências, não parece mais inalcançável o desejo e desvendar a consciência humana. Daqui para frente, para criar histórias que tocam o coração, você terá de entender cada vez mais sobre o que acontece nos entremeios da nossa mente.

#2 Prepare-se para fazer escolhas éticas

Calma, isso não quer dizer que até agora você fez escolhas condenáveis. É simplesmente que, à medida em que passamos a usar novas tecnologias, o exercício sobre os limites da narrativa terá de ser cada vez mais cuidadoso para não invadir o espaço e a privacidade do outro.

#3 Prepare-se para aliar-se às máquinas

Machine learning, deep learning, natural language generation: you name it! Daqui pra frente, os storytellers terão de usar cada vez mais esse tipo de sistema para expandir a criatividade e perpetuar a experiência da narrativa. Está pronto ou pronta para isso?

#4 Prepare-se para lidar com a nova subjetividade

Há quem diga que, em poucas décadas, a inteligência artificial vai se igualar ou superar a humana. Isso vai gerar consciência fora dos seres de carne e osso? Se não, como as novas gerações vão se comportar ao interagir com máquinas que imitam humanos? Para continuar contando boas histórias, você precisará pensar cada vez mais nesse novo paradigma.

#5 Esqueça do storytelling. Prepare-se para o storyfeeling

Um das principais lições do FoSt é a ideia de que narrativas poderosas vão depender cada vez menos de uma só pessoa. Bem-vindo(a) à era do storysharing. A troca de experiências será primordial para ganhar o que as pessoas têm de mais disputado nos dias de hoje: a atenção. Só assim você criará histórias que geram conexões verdadeiras e mantém audiências fiéis.

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* Christian Miguel é jornalista, curador de insights da GoAd e diretor de comunicação da CAUSE, consultoria que apoia marcas e organizações da sociedade civil a identificar e fazer a gestão de suas causas.