Como as tecnologias emergentes podem tornar o jornalismo mais rápido, confiável e eficiente? E que desafios as redações enfrentam com relação à utilização dessas tecnologias no seu dia a dia? Essas foram algumas das questões discutidas na 20a edição do International Symposium on Online Journalism (ISOJ), realizada nos dias 12 e 13 de abril, em Austin (EUA).
Promovido pelo Knight Center for Journalism in the Americas – The University of Texas at Austin, o evento reuniu palestrantes de diversos países, tanto da academia como da indústria midiática. Selecionamos alguns dos insights e projetos apresentados no simpósio, com foco na aplicação de novas tecnologias ao jornalismo – seja na mídia independente, seja nas organizações tradicionais.
Valores jornalísticos na inteligência artificial
“O futuro da inteligência artificial no jornalismo tem muita gente ao redor”, destacou Nick Diakopoulos, professor de Computational Journalism na Northwestern University (EUA). Isso significa que, embora algumas atividades deixem de ser feitas por pessoas e passem a ser realizadas por máquinas, há várias funções que dependem (e muito) dos humanos. Dados apresentados por Diakopoulos indicam que apenas 9% do trabalho de um editor e 15% do trabalho de um repórter podem ser automatizados, usando a AI disponível hoje.
Uma das responsabilidades das pessoas, nessa relação, é assegurar que valores jornalísticos sejam levados em consideração no desenvolvimento da inteligência artificial. “Em qual input um sistema presta atenção ou não, o que é quantificado ou não, que parâmetros são usados nos algoritmos… Todas essas são decisões humanas, que exercem um papel decisivo no design da inteligência artificial. Esses sistemas expressam os valores em que designers e programadores se basearam para construí-los. E isso faz com que essas ferramentas tenham um papel extremamente político”, diz Diakopoulos. “Acho que é hora de pensar a AI como um novo meio, no qual os jornalistas podem expressar e exercer seus valores profissionais por meio dos códigos que implementam”.
Automação em fact-checking
No segmento de checagem de fatos, uma das principais inovações é a ferramenta Squash, desenvolvida pela Duke University (EUA), que promete real time fact-cheking completamente automatizado, para programas de TV e conteúdos em vídeo compartilhados na internet (vídeo a seguir). No momento em que a informação é veiculada, o sistema filtra o trecho que pode não ser verdadeiro, verifica se já foi checado anteriormente, e exibe o resultado dessa checagem anterior – informando se determinado depoimento é falso ou exagerado, e onde é possível encontrar informações confiáveis sobre o assunto. O resultado aparece na tela, poucos instantes depois de a informação ter sido citada.
Em experimento recente, foram registrados seis acertos e 14 erros. “É assim que se inventa as coisas”, diz Bill Adair, professor da Duke University e fundador do PolitiFact. O objetivo é que o sistema esteja funcionando perfeitamente nas próximas eleições presidenciais norte-americanas, em 2020, para que seja possível confrontar políticos em debates ou entrevistas, no momento em que eles divulgarem informações duvidosas
Entre as ferramentas já em utilização pelos checadores de fatos está o Chequeabot, baseada em Processamento de Linguagem Natural (PLN) – braço da AI que ajuda computadores a interpretar e processar a linguagem humana. Esse sistema filtra depoimentos duvidosos encontrados em mais de 30 organizações de mídia na Argentina, assim como em discursos presidenciais e do Congresso, e compara-os com checagens de fatos anteriores, para verificar se correspondem ou não à verdade. “Quanto mais rápido conseguimos checar determinada informação, mantendo o rigor na apuração, mais impacto teremos, porque o tema ainda estará na agenda”, diz Pablo Fernández, diretor de inovação editorial no Chequeado, responsável pelo desenvolvimento da ferramenta.
A automação também vem sendo utilizada para orientar os próprios leitores, ouvintes e espectadores sobre como verificar a credibilidade de uma notícia. A organização brasileira Aos Fatos usa o robô Fátima para se comunicar com seu público via Facebook Messenger. O chatbot (vídeo a seguir) foi desenvolvido em código aberto, com base em PLN, e dá dicas de como checar informações que circulam na internet a partir do método adotado pelos checadores de Aos Fatos.
Big data: decifrando documentos oficiais
A organização sem fins lucrativos MuckRock mantém um banco de dados com milhares de documentos governamentais (com acesso gratuito), além de orientar jornalistas sobre como solicitar informações de órgãos públicos e fornecer ferramentas para facilitar e agilizar esse processo. A empresa trabalha com cerca de 2 mil redações e cerca de 100.000 pessoas.
O uso de machine learning ajuda a navegar pelos milhares de dados contidos nos documentos oficiais (incluindo PDFs e e-mails) e “limpar” a informação. Muito do trabalho ainda precisa ser feito por humanos. Mas, segundo Michael Morisy, co-fundador da MuckRock, a automação já dá conta de 30% do trabalho – mantendo-se os parâmetros de verificação e confiabilidade estabelecidos pela organização.
Moderação de comentários: até onde é possível automatizar
The Washington Post vem estudando o uso de machine learning para moderar comentários digitais do público por meio da ferramenta ModBot – para ajudar a dar conta das cerca de 2 milhões de mensagens, por mês, que o jornal recebe dos leitores. A ideia é que o tempo que seria dedicado a certo tipo de atividade, como aprovar ou não um comentário, pode ser usado para uma interação mais eficaz com os clientes, aumentando o engajamento.
Não é, no entanto, algo que dê para delegar totalmente para os robôs. A ferramenta categoriza os comentários com scores entre 0 e 1. Quanto mais perto de 1, maior a segurança da ferramenta sobre a necessidade de deletar aquele comentário, seguindo as normas determinadas pelo jornal. Quanto mais próximo de 0, maior a certeza de que o comentário deve ser aprovado. Tudo o que estiver acima de 0,8 vai ser automaticamente deletado. E tudo o que estiver abaixo de 0,1 vai ser automaticamente aprovado. O que ficar de fora dessas margens, tem de ser avaliado de forma manual, por humanos.
Produção: quando faz sentido recorrer aos robôs?
Esse tema sempre levanta questionamentos sobre a perda de empregos e a substituição de pessoas por máquinas. Mas é fato que boa parte das notícias já são escritas por robôs. Entre as organizações que apostam nessa prática estão Associated Press (AP) e Bloomberg, ambas presentes no ISOJ. Essas empresas defendem que a redação de notícias-padrão pode e deve ser automatizada – permitindo escalar a produção e, em tese, deixando os jornalistas mais livres para se dedicar a atividades mais complexas, como reportagens investigativas.
Tanto a Bloomberg como a AP recorrem à inteligência artificial, por exemplo, para a redação de textos rotineiros sobre os relatórios financeiros divulgados pelas empresas de capital aberto. Segundo Lisa Gibbs, Director of News Partnerships na AP, a agência deve fechar 2019 com 40 mil histórias geradas automaticamente – o que representa cerca de 10% do total de matérias realizadas pela agência em um ano.
A AP também está usando a inteligência artificial para criar sumários de todas as suas matérias, com base em Processamento de Linguagem Natural. Esses sumários resumem a notícia da forma como seria falada, e são particularmente úteis no sentido de levar o conteúdo da AP para assistentes virtuais, como a Alexa. Para a AP, esse experimento pode abrir novas possibilidades de personalização do conteúdo, de acordo com a audiência e o meio em que a notícia é consumida.
Redação aumentada e automatizada
Três critérios da Associated Press para usar a inteligência artificial:
. Essa tecnologia vai liberar os jornalistas de tarefas rotineiras e permitir que se dediquem mais ao trabalho investigativo?
. Essas ferramentas vão agilizar a produção e distribuição de notícias, além de ajudar a encontrar histórias sobre lugares e pessoas que não costumam ser ouvidos pela mídia?
. AI pode ajudar a alcançar novas audiências e mercados?
Apuração: mais agilidade e abrangência
A AP vem testando uma ferramenta que ajuda a identificar potenciais notícias mais rapidamente, em meio ao gigantesco volume de informações compartilhadas nas redes sociais. “Em várias situações, essa tecnologia nos permitiu detectar determinadas situações antes que nossos editores tomassem conhecimento sobre elas”, contou Lisa Gibbs.
A agência também está explorando a inteligência artificial no sentido de mapear pautas em regiões menos enfocadas pela mídia, a partir do social listening. A ideia é usar os algoritmos, por exemplo, para mapear o que as pessoas que vivem em comunidades de fronteira estão dizendo sobre imigração – e não se limitar às opiniões e versões de quem “fala mais alto” nas mídias sociais.
Impulsionando as matérias mais populares
The Washington Post criou uma estratégia para impulsionar as matérias mais populares, por meio da inteligência artificial. O jornal desenvolveu um sistema que permite prever o número de page views de cada artigo, nas 24 horas seguintes à sua publicação. Os artigos com potencial de atrair mais leitores podem receber um impulso extra da redação – que pode consistir, por exemplo, em mais conteúdo, com a inclusão de vídeos e links contextuais.
A decisão final cabe aos editores. Segundo Ling Jiang, cientista de dados no jornal, com essa ferramenta de “previsão de popularidade” a redação pode otimizar a alocação de recursos, oferecer melhores experiências para os leitores, e explorar possibilidades publicitárias de forma mais produtiva.